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sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

O machismo turco e outros diversos problemas

Situaçao 1 : marido recebendo resultados dos meus exames médicos por e-mail.

Recentemente fiz diversos exames (sim, relativos ao meu problema com a comida turca e suas diversas pimentas e o azeite de oliva) e eis que meu maridinho me mostra o Galaxy dele com o e-mail aberto.

- Esses exames aqui sao os que você já pegou ou sao outros ?
- Mas e por que você está recebendo isso ????

E ele já se saltou falando "oras, sou seu marido. Entre marido e mulher nao devem haver segredos, eu tenho que saber o seu estado de saúde etc." Lembram do post onde relatei a briga que tivemos quando ele abriu uma carta endereçada a mim ?

Entao ... várias luas se passaram desde aquele episódio, cuja desculpa para o ato foi o fato deu "nao ser apta a entender o conteúdo da carta."

E agora ?

Desta vez eu nao briguei. Nao, isso nao significa que eu virei uma mulher submissa.

Desta vez eu usei todo o meu poder de argumentaçao:

- Ah sim, uma vez que nao devem haver segredos entre marido e mulher, entao eu também receberei seus laudos médicos por e-mail, certo ?

Meu marido ficou mudo e calado. Eu continuei em tom de brincadeira, pulando nele e rindo:
- Ou você acha que é meu dono e tá usando isso de desculpa ? E por que eu nao recebi meu laudo por email ? Qual é a desculpa agora, que nao sei ler em turco ????
Ele ria também e disse:
- Nao é bem isso ...
- Ah, entao você se acha melhor do que eu ?
- Nao! Nao ! De modo algum ...
- Entao você pode por o meu email pra receber seus laudos, senao eu mesma farei isso ...
- Tá certa, tá certa.

Lembrei de um conto de Malba Tahan, onde o jovem entendeu o sistema e usou o sistema contra ele próprio pra se vingar. No meu caso - além de me dedicar a aprender turco - tenho observado como o sistema se desenrola, as relaçoes sociais daqui e procurando me proteger como posso.

Situaçao 2 - pesquisando preço de fisioterapeuta pra uma amiga americana

No mesmo hospital onde fiz meus exames fui com uma amiga verificar os preços das sessoes de fisio. Recomendei o hospital por saber que eles disponibilizam tradutores para pacientes estrangeiros.
A atendente estava tentando convencê-la a ter uma nova consulta com o especialista e fazer novamente o exame de ressonância, alengando que o mesmo era antigo. Minha amiga contestou mas ela continuou insistindo.
Eu nao me aguentei e virei em turco pra ela: qual a necessidade dela passar novamente por consulta médica ? Os médicos deste hospital nao confiam nos médicos do Şifa ? E outra: como uma ressonância de duas semanas atrás pode ser "antigo" ?
- A senhora tem razao, vamos falar com o médico para ver se ele aceita os exames.

E aceitou. Mesmo quando você encontra alguém falando inglês ainda assim está sujeito a nego querer tirar vantagem. E neste caso a vantagem era de mais de 100 paus.
A questao neste caso nao é nem o idioma. É argumentar baseada em fatos lógicos e óbvios.

Situaçao 3 - o garçom chato empurrando cha, café e pimenta em compota (ta loko meu ?)

Fui a um restaurante com uma amiga russa - nunca tinhamos entrado lá. Ela comeu a saladinha dela e eu , como ainda estava cheia do spaghetii do almoço somente pedi um ayran. Eu nem tinha terminado meu ayran o garçom já veio oferecer chá.
- Nao obrigada.
- Café ?
- Nao obrigada.
- Por queeeeeeeeeeee ???

Mano, eu me segurei mas fui educada. Tentei um argumento que encerrasse logo o papo.
- O médico proibiu.
- Mas por queeeeee ? O que é que você tem?

Mano eu mereço... garçom mais abusado, intrometido. Eu somente queria encerrar.
Vi umas compotas que de longe pareceram doce de abóbora. Só no meu sonho que ia ter isso aqui em İzmir ...
Pronto dae veio outro chato pra querer empurrar os produtos, que na verdade eram pimentoes em molho de tomate!
- Nao, nao de jeito nenhum! Sou alérgica, o médico proibiu.

Quando voltei pra minha mesa pra terminar o meu ayran o garçom chato vem com uma compota e diz que ia me dar uma com garantia de que nao iria me fazer mal. Perguntei se poderia mandar a conta do hospital pra ele também.

Bem ... da última vez que me "deram" uma coisa a coisa custou 40 paus ...

- Quanto ?
- 10 liras.
- Mas eu nao posso, o médico me proibiu.
- Por queeeeee? Qual o seu problema ?????
- Ulcera. - respondi esperançosa de que ele me deixasse em paz.
- Mas eu também tenho úlcera ! E nossa essa compota me ajuda muito e tal e bla bla bla ...

Eu mereço ! Ele definitivamente achou que eu era idiota. Minha amiga russa nao escondeu o risinho no canto da boca.

- Olha, entao eu vou ligar pro meu marido pra saber se ELE quer, por que eu nao vou comer ...

Enquanto eu ligava pro Mustafa ele se afastava, e depois da ligaçao ele mesmo quem disse:
- Você nao quer, é isso ?
- İsso.

E pegou o pote, levando-o novamente pra prateleira.

Mesmo que meu marido nao tivesse atendido, eu ia falar com o tu tu tu tu de qualquer maneira. Quando você fala em "marido" o povo muda.

Agora sim o conto "a ciência da vida" de Malba Tahan. Boa leitura !

A ciência da vida - Malba Tahan



Por Malba Tahan

Naquele ano um acontecimento inesquecível perturbou a secular tranqüilidade da pequena vila de Anadir.

Assinalemos o caso. O jovem e talentoso Namedin, filho do xeque Omar Iruã, depois de longa ausência, regressava ao seu torrão natal, trazendo o diploma que lhe fora conferido pela famosa Universidade de Bagdá.
E o inteligente Namedin não perdera tempo na capital: segundo o dizer das pessoas cultas, era o nosso herói motivo de orgulho para a sua terra, e de glória para a sua família. Aprendera, durante seis anos, com sábios muçulmanos, a ciência imensa que vem nos livros. Estudara, além do mais, a Filosofia, a Matemática cheia de fórmulas, a Lógica com seus belos princípios, a Retórica, a Astronomia e vários outros ramos fecundos do conhecimento humano.
O rico xeque Omar Iruã, figura de relevo na cidade, proclamava com paternal vaidade aos amigos:
- Meu filho, senhores, pela cultura incomparável que possui, é capaz de discutir trinta dias com os ulemás do Egito e da Palestina!
Ulemá - como todos sabem - é sinônimo de homem que se destaca pelo saber e pelo estudo. E pouco faltava para que Namedin, apesar de sua juventude, fosse consagrado pelos seus concidadãos com o honroso título de "ulemá".
E em Anadir, afinal, desde a mesquita até o hamã (1) não se comentava outra coisa. As lendas mais espantosas brotavam no meio das rodas que palestravam. Dizia um que Namedin conhecia os cento e trinta mil segredos do Alcorão; garantia outro que o jovem sabia de cor todas as páginas de Ibn Batuta, o sociólogo; afirmava um terceiro que o mancebo resolvia equações e fazia cálculos com letras. E não havia, é certo, muito exagero nessas indicações. O recém-formado era douto entre os mais doutos.
Ao cair da tarde, em meio dos festejos, o xeque Omar Iruã chamou o jovem bacharel e disse-lhe:
- A tua fama, meu filho, deslumbra e assombra a nossa pequenina terra. É preciso porém que, em prova pública, possas justificar o alto conceito em que és tido pelos nossos conterrâneos.
- Que devo fazer, meu pai? - perguntou o rapaz.
- Nada mais simples - explicou o velho. - Hoje à noite depois da prece (2), haverá uma reunião na mesquita. Lá estarão presentes os homens mais ricos de Anadir e também o nosso venerável mufti Dijá-Eddin Abdel-Anurek Ben-Abdallah com seus conselheiros, cádis e secretários. Farás nessa ocasião um eloqüente discurso no qual demonstrarás que és um conhecedor profundo da verdadeira ciência da vida. Com esse discurso deverás impressionar principalmente o mufti, nosso ilustre chefe e judicioso amigo.
Assim farei, meu pai - volveu com segurança o moço. - Asseguro-te que o povo ficará deslumbrado com as minhas arrebatadoras palavras.
E, nessa mesma noite, realizou-se na mesquita a reunião solene. Ao templo compareceram os elementos mais representativos da sociedade muçulmana: xeques, com seus turbantes de seda, ricos mercadores, escribas, doutores, etc.
O jovem Namedin, ao subir para a tribuna que lhe fora destinada, com um rápido olhar examinou o público numeroso que ia ouvi-lo. Avistou logo o velho mufti (3), imponente, com suas veneráveis barbas derramadas sobre o peito.
Ditas as palavras do ritual: "Em nome de Allah, clemente e misericordioso", o nosso herói iniciou um vibrante discurso de apresentação.
Discorreu, a principio, sobre os grandes movimentos sociais dos povos civilizados, impelidos pelas correntes irresistíveis do modernismo. Pintou, com as cores vivas da eloqüência, o panorama da vida arrebatada pelos fatores mais complexos das tendências sociais.
- Por Allah! Que talento! - murmuravam os ouvintes.
- E, amigos - continuava o jovem orador arrastado por um entusiasmo sempre crescente, - o mundo, queiram ou não queiram os espíritos tacanhos, marcha para a frente levado por um ideal invencível de aperfeiçoamento. E a nossa infeliz Anadir fica imóvel, abandonada à margem do progresso, como se fora uma cidade morta e esquecida. E quereis saber porquê? Eu vos direi a verdade. O governo desta terra está entregue ao velho mufti, homem decrépito, incapaz de compreender as tendências modernas da sociedade. Como pode um espírito rotineiro, inculto, arcaizante, admitir as transformações impostas pelo progresso? Jamais há de prosperar uma cidade cujos destinos estão nas mãos de um ancião sem a indispensável energia e sem a necessária capacidade administrativa.
Essas palavras, que feriram o homem de maior prestígio na cidade, causaram nos muçulmanos um escândalo nunca visto.
O mufti ouviu impassível a parlenda do moço como se nada tivesse compreendido; fez apenas um ligeiro sinal com os olhos a um de seus auxiliares e este murmurou
- Logo, ao sair, veremos.
E quando Namedin, orgulhoso pela sensação causada, deixava a mesquita, foi de súbito agarrado por três capangas e espancado impiedosamente.
A sova foi tão violenta que o imprudente perdeu os sentidos e teve de ser carregado por alguns amigos para a casa de seus pais.
Muitos dias depois, quando já se achava convalescente dos ferimentos recebidos, falou ao pai e queixou-se do procedimento indigno do mufti que fora o mandatário da bárbara agressão.
Disse-lhe, então, o velho xeque:
- O mufti assim procedeu, meu filho, por um motivo muito justo. Ele quis mostrar que, apesar do curso de seis anos que fizeste na Universidade, ainda ignoras, por completo, a Ciência da Vida. Vais, portanto, por minha ordem, voltar novamente para Bagdá e estudarás mais um ano com os sábios filósofos. Veremos depois se findo êsse novo prazo se terás adquirido os conhecimentos indispensáveis sobre a verdadeira Ciência da Vida.
Namedin, obrigado a obedecer à resolução paterna, voltou para Bagdá e durante vários meses freqüentou os cursos da Universidade.
Quando regressou outra vez ao seu torrão natal foi festivamente recebido por seus antigos camaradas.
Houve, como da primeira vez, sob a presidência do mufti, uma grande reunião na mesquita e o jovem Namedin foi convidado a proferir um discurso.
Ao tomar lugar na tribuna, o nosso herói avistou a figura impotente do mufti que, rodeado de seus íntimos, aguardava, como da outra vez, solene, a palavra do orador.
Namedin, em longos e eloqüentes períodos, fez o elogio do povo fiel de sua terra natal que ele qualificou de "próspera e progressiva". Falou, em seguida, da figura do mufti, esse ancião venerável, "modelo de virtudes", "xeque dos xeques", "amparo da justiça", "inspirado de Allah" e mil outros elogios que deixaram o mufti sensibilizado e comovido.
E, com um brilho incomparável, Namedin assim falava:
- E devo dizer ainda, ó irmãos dos árabes!, que o nosso glorioso mufti pelas suas excelsas virtudes, pela sua vida exemplar e digna, é um verdadeiro santo! E qual é a homenagem que os fiéis muçulmanos devem prestar aos grandes santos do Islã? Determina o Alcorão, o livro de Deus: "Conservai dos homens dignos os bons exemplos e venerai as suas relíquias". Cumpre-nos pois como um dever sagrado, conservar do nosso santo mufti uma relíquia qualquer. E das relíquias dos santos as mais preciosas são constituídas pelos fios de barba. Que cada um dos bons fiéis conserve do nosso virtuoso mufti um fio de suas veneráveis barbas.
E, depois de proferir tais palavras, o jovem Namedin desceu da tribuna, dirigiu-se ao mufti, inclinou-se respeitoso e com a ponta dos dedos arrancou delicadamente um fio das longas barbas do ancião.
O mufti, lisonjeado em sua vaidade em face da extraordinária homenagem, agradeceu e abraçou risonho o nosso herói.
O exemplo de Namedin foi logo seguido por várias pessoas que se achavam perto. Ao fim de alguns minutos, verdadeira legião de fanáticos atirava-se sobre o velho mufti que se sentia puxado pelas barbas e maltratado pelos seus devotados servos.
Os fiéis faziam empenho em obter uma relíquia do "santo".
Com o rosto a sangrar e as vestes em farrapos conseguiu o mufti fugir dos exaltados muçulmanos.
E o inteligente Namedin rejubilava-se da lembrança que tivera. Estava vingado da sova tremenda que um ano antes recebera por ter sido sincero.
E, nessa noite, seu pai disse-lhe orgulhoso:
- Agora sim, meu filho, já conheces perfeitamente a verdadeira Ciência da Vida.

(1) Hamã - Casa de banhos.
(2) Prece - As preces obrigatórias para os muçulmanos são em número de cinco. A primeira, ao nascer do dia; a segunda, ao meio-dia; a terceira, tem lugar às quatro horas da tarde, mais ou menos; a quartaé proferida ao cair da tarde e a última à noite. A prece deve ser precedida da ablução.
(3) Mufti - Espécie de prefeito e juiz. O mufti era encarregado do governo de uma cidade.


Fonte: Tahan, Malba. O gato do cheique e outras lendas. Rio de Janeiro: Ediouro Publicações S.A., 1997.
 
 
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