Recentemente fiz diversos exames (sim, relativos ao meu problema com a comida turca e suas diversas pimentas e o azeite de oliva) e eis que meu maridinho me mostra o Galaxy dele com o e-mail aberto.
- Esses exames aqui sao os que você já pegou ou sao outros ?
- Mas e por que você está recebendo isso ????
E ele já se saltou falando "oras, sou seu marido. Entre marido e mulher nao devem haver segredos, eu tenho que saber o seu estado de saúde etc." Lembram do post onde relatei a briga que tivemos quando ele abriu uma carta endereçada a mim ?
Entao ... várias luas se passaram desde aquele episódio, cuja desculpa para o ato foi o fato deu "nao ser apta a entender o conteúdo da carta."
E agora ?
Desta vez eu nao briguei. Nao, isso nao significa que eu virei uma mulher submissa.
Desta vez eu usei todo o meu poder de argumentaçao:
- Ah sim, uma vez que nao devem haver segredos entre marido e mulher, entao eu também receberei seus laudos médicos por e-mail, certo ?
Meu marido ficou mudo e calado. Eu continuei em tom de brincadeira, pulando nele e rindo:
- Ou você acha que é meu dono e tá usando isso de desculpa ? E por que eu nao recebi meu laudo por email ? Qual é a desculpa agora, que nao sei ler em turco ????
Ele ria também e disse:
- Nao é bem isso ...
- Ah, entao você se acha melhor do que eu ?
- Nao! Nao ! De modo algum ...
- Entao você pode por o meu email pra receber seus laudos, senao eu mesma farei isso ...
- Tá certa, tá certa.
Lembrei de um conto de Malba Tahan, onde o jovem entendeu o sistema e usou o sistema contra ele próprio pra se vingar. No meu caso - além de me dedicar a aprender turco - tenho observado como o sistema se desenrola, as relaçoes sociais daqui e procurando me proteger como posso.
Situaçao 2 - pesquisando preço de fisioterapeuta pra uma amiga americana
No mesmo hospital onde fiz meus exames fui com uma amiga verificar os preços das sessoes de fisio. Recomendei o hospital por saber que eles disponibilizam tradutores para pacientes estrangeiros.
A atendente estava tentando convencê-la a ter uma nova consulta com o especialista e fazer novamente o exame de ressonância, alengando que o mesmo era antigo. Minha amiga contestou mas ela continuou insistindo.
Eu nao me aguentei e virei em turco pra ela: qual a necessidade dela passar novamente por consulta médica ? Os médicos deste hospital nao confiam nos médicos do Şifa ? E outra: como uma ressonância de duas semanas atrás pode ser "antigo" ?
- A senhora tem razao, vamos falar com o médico para ver se ele aceita os exames.
E aceitou. Mesmo quando você encontra alguém falando inglês ainda assim está sujeito a nego querer tirar vantagem. E neste caso a vantagem era de mais de 100 paus.
A questao neste caso nao é nem o idioma. É argumentar baseada em fatos lógicos e óbvios.
Situaçao 3 - o garçom chato empurrando cha, café e pimenta em compota (ta loko meu ?)
Fui a um restaurante com uma amiga russa - nunca tinhamos entrado lá. Ela comeu a saladinha dela e eu , como ainda estava cheia do spaghetii do almoço somente pedi um ayran. Eu nem tinha terminado meu ayran o garçom já veio oferecer chá.
- Nao obrigada.
- Café ?
- Nao obrigada.
- Por queeeeeeeeeeee ???
Mano, eu me segurei mas fui educada. Tentei um argumento que encerrasse logo o papo.
- O médico proibiu.
- Mas por queeeeee ? O que é que você tem?
Mano eu mereço... garçom mais abusado, intrometido. Eu somente queria encerrar.
Vi umas compotas que de longe pareceram doce de abóbora. Só no meu sonho que ia ter isso aqui em İzmir ...
Pronto dae veio outro chato pra querer empurrar os produtos, que na verdade eram pimentoes em molho de tomate!
- Nao, nao de jeito nenhum! Sou alérgica, o médico proibiu.
Quando voltei pra minha mesa pra terminar o meu ayran o garçom chato vem com uma compota e diz que ia me dar uma com garantia de que nao iria me fazer mal. Perguntei se poderia mandar a conta do hospital pra ele também.
Bem ... da última vez que me "deram" uma coisa a coisa custou 40 paus ...
- Quanto ?
- 10 liras.
- Mas eu nao posso, o médico me proibiu.
- Por queeeeee? Qual o seu problema ?????
- Ulcera. - respondi esperançosa de que ele me deixasse em paz.
- Mas eu também tenho úlcera ! E nossa essa compota me ajuda muito e tal e bla bla bla ...
Eu mereço ! Ele definitivamente achou que eu era idiota. Minha amiga russa nao escondeu o risinho no canto da boca.
- Olha, entao eu vou ligar pro meu marido pra saber se ELE quer, por que eu nao vou comer ...
Enquanto eu ligava pro Mustafa ele se afastava, e depois da ligaçao ele mesmo quem disse:
- Você nao quer, é isso ?
- İsso.
E pegou o pote, levando-o novamente pra prateleira.
Mesmo que meu marido nao tivesse atendido, eu ia falar com o tu tu tu tu de qualquer maneira. Quando você fala em "marido" o povo muda.
Agora sim o conto "a ciência da vida" de Malba Tahan. Boa leitura !
A ciência da vida - Malba Tahan
Por Malba
Tahan
Naquele ano
um acontecimento inesquecível perturbou a secular tranqüilidade da pequena vila
de Anadir.
Assinalemos
o caso. O jovem e talentoso Namedin, filho do xeque Omar Iruã, depois de longa
ausência, regressava ao seu torrão natal, trazendo o diploma que lhe fora
conferido pela famosa Universidade de Bagdá.
E o
inteligente Namedin não perdera tempo na capital: segundo o dizer das pessoas
cultas, era o nosso herói motivo de orgulho para a sua terra, e de glória para a
sua família. Aprendera, durante seis anos, com sábios muçulmanos, a ciência
imensa que vem nos livros. Estudara, além do mais, a Filosofia, a Matemática
cheia de fórmulas, a Lógica com seus belos princípios, a Retórica, a Astronomia
e vários outros ramos fecundos do conhecimento humano.
O rico xeque
Omar Iruã, figura de relevo na cidade, proclamava com paternal vaidade aos
amigos:
- Meu filho,
senhores, pela cultura incomparável que possui, é capaz de discutir trinta dias
com os ulemás do Egito e da Palestina!
Ulemá - como
todos sabem - é sinônimo de homem que se destaca pelo saber e pelo estudo. E
pouco faltava para que Namedin, apesar de sua juventude, fosse consagrado pelos
seus concidadãos com o honroso título de "ulemá".
E em Anadir,
afinal, desde a mesquita até o hamã (1) não se comentava outra coisa. As lendas
mais espantosas brotavam no meio das rodas que palestravam. Dizia um que Namedin
conhecia os cento e trinta mil segredos do Alcorão; garantia outro que o jovem
sabia de cor todas as páginas de Ibn Batuta, o sociólogo; afirmava um terceiro
que o mancebo resolvia equações e fazia cálculos com letras. E não havia, é
certo, muito exagero nessas indicações. O recém-formado era douto entre os mais
doutos.
Ao cair da
tarde, em meio dos festejos, o xeque Omar Iruã chamou o jovem bacharel e
disse-lhe:
- A tua
fama, meu filho, deslumbra e assombra a nossa pequenina terra. É preciso porém
que, em prova pública, possas justificar o alto conceito em que és tido pelos
nossos conterrâneos.
- Que devo
fazer, meu pai? - perguntou o rapaz.
- Nada mais
simples - explicou o velho. - Hoje à noite depois da prece (2), haverá uma
reunião na mesquita. Lá estarão presentes os homens mais ricos de Anadir e
também o nosso venerável mufti Dijá-Eddin Abdel-Anurek Ben-Abdallah com seus
conselheiros, cádis e secretários. Farás nessa ocasião um eloqüente discurso no
qual demonstrarás que és um conhecedor profundo da verdadeira ciência da vida.
Com esse discurso deverás impressionar principalmente o mufti, nosso ilustre
chefe e judicioso amigo.
Assim farei,
meu pai - volveu com segurança o moço. - Asseguro-te que o povo ficará
deslumbrado com as minhas arrebatadoras palavras.
E, nessa
mesma noite, realizou-se na mesquita a reunião solene. Ao templo compareceram os
elementos mais representativos da sociedade muçulmana: xeques, com seus
turbantes de seda, ricos mercadores, escribas, doutores, etc.
O jovem
Namedin, ao subir para a tribuna que lhe fora destinada, com um rápido olhar
examinou o público numeroso que ia ouvi-lo. Avistou logo o velho mufti (3),
imponente, com suas veneráveis barbas derramadas sobre o peito.
Ditas as
palavras do ritual: "Em nome de Allah, clemente e misericordioso", o nosso herói
iniciou um vibrante discurso de apresentação.
Discorreu, a
principio, sobre os grandes movimentos sociais dos povos civilizados, impelidos
pelas correntes irresistíveis do modernismo. Pintou, com as cores vivas da
eloqüência, o panorama da vida arrebatada pelos fatores mais complexos das
tendências sociais.
- Por Allah!
Que talento! - murmuravam os ouvintes.
- E, amigos
- continuava o jovem orador arrastado por um entusiasmo sempre crescente, - o
mundo, queiram ou não queiram os espíritos tacanhos, marcha para a frente levado
por um ideal invencível de aperfeiçoamento. E a nossa infeliz Anadir fica
imóvel, abandonada à margem do progresso, como se fora uma cidade morta e
esquecida. E quereis saber porquê? Eu vos direi a verdade. O governo desta terra
está entregue ao velho mufti, homem decrépito, incapaz de compreender as
tendências modernas da sociedade. Como pode um espírito rotineiro, inculto,
arcaizante, admitir as transformações impostas pelo progresso? Jamais há de
prosperar uma cidade cujos destinos estão nas mãos de um ancião sem a
indispensável energia e sem a necessária capacidade administrativa.
Essas
palavras, que feriram o homem de maior prestígio na cidade, causaram nos
muçulmanos um escândalo nunca visto.
O mufti
ouviu impassível a parlenda do moço como se nada tivesse compreendido; fez
apenas um ligeiro sinal com os olhos a um de seus auxiliares e este
murmurou
- Logo, ao
sair, veremos.
E quando
Namedin, orgulhoso pela sensação causada, deixava a mesquita, foi de súbito
agarrado por três capangas e espancado impiedosamente.
A sova foi
tão violenta que o imprudente perdeu os sentidos e teve de ser carregado por
alguns amigos para a casa de seus pais.
Muitos dias
depois, quando já se achava convalescente dos ferimentos recebidos, falou ao pai
e queixou-se do procedimento indigno do mufti que fora o mandatário da bárbara
agressão.
Disse-lhe,
então, o velho xeque:
- O mufti
assim procedeu, meu filho, por um motivo muito justo. Ele quis mostrar que,
apesar do curso de seis anos que fizeste na Universidade, ainda ignoras, por
completo, a Ciência da Vida. Vais, portanto, por minha ordem, voltar novamente
para Bagdá e estudarás mais um ano com os sábios filósofos. Veremos depois se
findo êsse novo prazo se terás adquirido os conhecimentos indispensáveis sobre a
verdadeira Ciência da Vida.
Namedin,
obrigado a obedecer à resolução paterna, voltou para Bagdá e durante vários
meses freqüentou os cursos da Universidade.
Quando
regressou outra vez ao seu torrão natal foi festivamente recebido por seus
antigos camaradas.
Houve, como
da primeira vez, sob a presidência do mufti, uma grande reunião na mesquita e o
jovem Namedin foi convidado a proferir um discurso.
Ao tomar
lugar na tribuna, o nosso herói avistou a figura impotente do mufti que, rodeado
de seus íntimos, aguardava, como da outra vez, solene, a palavra do
orador.
Namedin, em
longos e eloqüentes períodos, fez o elogio do povo fiel de sua terra natal que
ele qualificou de "próspera e progressiva". Falou, em seguida, da figura do
mufti, esse ancião venerável, "modelo de virtudes", "xeque dos xeques", "amparo
da justiça", "inspirado de Allah" e mil outros elogios que deixaram o mufti
sensibilizado e comovido.
E, com um
brilho incomparável, Namedin assim falava:
- E devo
dizer ainda, ó irmãos dos árabes!, que o nosso glorioso mufti pelas suas
excelsas virtudes, pela sua vida exemplar e digna, é um verdadeiro santo! E qual
é a homenagem que os fiéis muçulmanos devem prestar aos grandes santos do Islã?
Determina o Alcorão, o livro de Deus: "Conservai dos homens dignos os bons
exemplos e venerai as suas relíquias". Cumpre-nos pois como um dever sagrado,
conservar do nosso santo mufti uma relíquia qualquer. E das relíquias dos santos
as mais preciosas são constituídas pelos fios de barba. Que cada um dos bons
fiéis conserve do nosso virtuoso mufti um fio de suas veneráveis
barbas.
E, depois de
proferir tais palavras, o jovem Namedin desceu da tribuna, dirigiu-se ao mufti,
inclinou-se respeitoso e com a ponta dos dedos arrancou delicadamente um fio das
longas barbas do ancião.
O mufti,
lisonjeado em sua vaidade em face da extraordinária homenagem, agradeceu e
abraçou risonho o nosso herói.
O exemplo de
Namedin foi logo seguido por várias pessoas que se achavam perto. Ao fim de
alguns minutos, verdadeira legião de fanáticos atirava-se sobre o velho mufti
que se sentia puxado pelas barbas e maltratado pelos seus devotados servos.
Os fiéis
faziam empenho em obter uma relíquia do "santo".
Com o rosto
a sangrar e as vestes em farrapos conseguiu o mufti fugir dos exaltados
muçulmanos.
E o
inteligente Namedin rejubilava-se da lembrança que tivera. Estava vingado da
sova tremenda que um ano antes recebera por ter sido sincero.
E, nessa
noite, seu pai disse-lhe orgulhoso:
- Agora sim,
meu filho, já conheces perfeitamente a verdadeira Ciência da Vida.
(1) Hamã -
Casa de banhos.
(2)
Prece - As preces obrigatórias para os muçulmanos são em número de cinco. A
primeira, ao nascer do dia; a segunda, ao meio-dia; a terceira, tem lugar às
quatro horas da tarde, mais ou menos; a quartaé proferida ao cair da tarde e a
última à noite. A prece deve ser precedida da ablução.
(3)
Mufti - Espécie de prefeito e juiz. O mufti era encarregado do governo de uma
cidade.
Fonte: Tahan, Malba. O gato do cheique e outras lendas. Rio de Janeiro: Ediouro Publicações S.A., 1997.
Tirado do blog:http://patriciagonzalez11.blogspot.com/2011/03/ciencia-da-vida-malba-tahan.html