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domingo, 20 de janeiro de 2013

Momento de fé - javali na chuva

Juro por Deus que nunca mais faço uma loucura dessas ... İsso foi na sexta-feira última, na boca da noite.

Decidi voltar do curso sozinha, e como vocês sabem aqui na floresta nao tem ponto de ônibus. O mais próximo fica a 2 km do portao de casa ...

O problema nao sao os dois quilometros em si, mas os tipos que você pode encontrar no caminho: cobras e principalmente javalis.

Se você topar com um filhote de javali, nao tente fazer o projeto de leitao refém caso você também tope com a mae da criatura ...


Sob chuva com muita ventania,  e o medo de topar com um javali qualquer (o que de fato acabou acontecendo ...) mae e filho, meu sonho de feijoada materializado em monstro diante dos meus olhos. O crepúsculo encerrando cada canto na escuridao, o vento que soprava sem misericórida, completando esse quadro digno de filme de terror.

E eis que orei um versículo do Salmo 23, enquanto fazia barulho raspando o galho que me serviu de cajado que achara minutos atrás:

O Senhor é o meu pastor; de nada terei falta.
Em verdes pastagens me faz repousar e me conduz a águas tranqüilas;
restaura-me o vigor. Guia-me nas veredas da justiça por amor do seu nome.
Mesmo quando eu andar por um vale de trevas e morte, não temerei perigo algum, pois tu estás comigo; a tua vara e o teu cajado me protegem.

Mae e filho, talvez por nao distinguirem o que se aproximava - a meia-luz, sob chuva e o barulho do cajado raspando no chao, alem da provável miopia que esses bichos possuem - correram barranco abaixo, em direçao ao riacho.

Respirei aliviada e segui minha jornada, a largos passos, sem olhar para trás. Foram poucos minutos até chegar sa e salva no lar quentinho que me esperava cravado nas montanhas ...













terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Momento One Minute ... Kahve Dıyarı Konak

Olá pessoal,

O momento "one minute" (em homenagem ao primeiro ministro turco, procure no youtube quando tiver tempo ...) é aquele momento em que eu me seguro pra nao responder o que me veio a cabeça.

No momento One Minute de hoje a situaçao relatada se passou ontem com minha amiga argentina. Entramos, saudamos o garçom que abriu a porta pra gente, fizemos o pedido ... tudo em turco.

E ficamos batendo papo em inglês, num tom normal sem chamar a atençao dos demais. Na hora de pagar a conta fomos até o caixa - uma vez que os garçons haviam sumido - e saquei o cartao do banco.

A moça do caixa passou numa máquina mas, pela cara que fez nao funcionou. Nesse instante vem um rapaz, trajado como um cliente (creio eu que era o gerente) e falando bem alto em inglês (bem pra se "amostrar" como diz o bom baiano) me faz uma série de perguntas:

- É a primeira vez que a senhora usa esse cartao ?
- Este cartao é de um banco turco ?

Mano! Se o cara olhasse ao menos pro cartao que estava segurando, ele já respondia a segunda pergunta logo de cara. Mas, por achar que estava diante de turistas (alguém tem outra explicaçao ?) ele se saltou nessa supereficiência descabida.

- İş Bankası bir Türk bankası, değil mi ? (O İş Bankası é um banco turco, nao é?) nao pude segurar o tom irônico.
- Ué, mas a senhora fala turco ?
- Sim, lógico que falo, eu moro aqui. - respondi.
- Entao por que vocês estao falando em inglês ?

O momento One Minute começa agora ...

Meu, em momento algum eu falei em inglês com nenhum dos funcionarios la, alias com aquele ser eu sequer palavra alguma havia trocado ... Me segurei pra nao falar um "nao te interessa", mas voltei pra casa pensando se o erro foi meu por estar falando em inglês com minha amiga argentina.
Mas também nao é da conta daquele desconhecido em que lingua eu falo com os meus amigos, certo ?
E a culpa é dele por essa pergunta descabida ?

Hoje de manha uma lembrança me veio a cabeça: quando o Mustafa foi ao Brasil, entramos numa loja do Boticario e eu estava explicando em inglês sobre os produtos, perfumes, etc. Ele foi para o outro lado experimentar alguns dos perfumes quando eu senti alguém cutucando o meu braço.

Olhei. Eram duas senhoras apontando para um perfume e fazendo um exagerado sinal de "joinha" com um sorriso escancarado.

Daí me toquei do porque da comunicaçao Tarzan.

- Se a senhora quiser podemos falar em português ... - respondi.
- Ah, você fala português ?? - perguntou surpresa.
- Lógico, eu sou brasileira.
- Ah, achei que fosse estrangeira ... - respondeu com voz murcha e virou as costas, perdendo totalmente interesse em mim ...

Moral da história: nao vou dizer que "por ser estrangeira" na Turquia que essas coisas somente acontecem comigo aqui. Nao ! Globalizaçao é um fenômeno recente, e nem todos sabem lidar com isso naturalmente, muitos ainda se deslumbram quando se deparam com um estrangeiro e falar a lingua da globalizaçao (hoje o inglês, mas no passado tivemos o francês e o koyne na Grécia Antiga) confere status. Mesmo num lugar turístico pra cacete como Konak em İzmir ...

O estrangeiro é tao gente quanto você eu ou qualquer outro, tem mais ou menos os mesmos medos e necessidades que qualquer ser humano. Acredite: estrangeiro come e faz cocô do mesmo jeito ...

Dizer que vivemos num mundo sem fronteiras é mais do que um clichê: é realidade.

domingo, 13 de janeiro de 2013

Lealdade

Como os leitores sabem ainda estou passando pelo calvario da recuperaçao de uma série de problemas digestivos por conta da pimenta + azeite de oliva da culinária turca. Vou incluir mudanças climáticas e stress da adaptaçao como causadores disso também.

E os medicamentos sao fortes e dao uma série de efeitos colaterais, bom ao menos o bando de barnabé que me rodeia finalmente entendeu que o meu problema nao está relacionado a "nao gostar" e sim "a ter intolerância alimentar".

Um dos medicamentos estava me causando insônia (este eu já terminei semana passada). Todos os dias, as 4h30 da manha eu tava de pé, e na falta do que fazer acabava assistindo a novela pela internet.

Meu marido passou a levantar todos os dias pra me fazer companhia, mesmo caindo de sono. Tentava me levantar sem ele perceber, mas nao teve jeito. Ficava ao meu lado até o meu sono vir novamente.


Parceiro é parceiro.

Tratado sobre cara-de-pau, MUNDO

Olá pessoal,

Nao sei se vocês lembram do post sobre "cara-de-pau" (http://lucinaturquia.blogspot.com/2012/02/trofeu-cara-de-pau.html) onde copiei e colei o e-mail de uma pessoa que trabalhou comigo num cargo de chefia, sempre me ignorando (ignorando até mesmo meus "bom dia") e que decidiu enviar esse e-mail somente porque eu estou morando fora do país.

Sim, isso é fato. Antes de me mudar pra cá eu havia saído de Sao Paulo e morado 8 meses numa cidade a 35km de lá e ninguém, absolutamente ninguém desse bando de "conhecidos":

- me enviou email pra saber como eu estava,
- me perguntou quando poderia me fazer uma visitinha.

Por um momento eu achei que esse traço de cara-de-pau fosse algo que somente ocorresse em nossa sociedade, onde alguns (bom frizar aqui que nem todos, viu pessoal ?) ainda têm aquele deslumbramento sobre morar no exterior.

Objetivo ? Economizar com custos com hotelaria e operadora de tour uma vez que você, como boa amiga de infância que somente é na cabeça do "cara-de-pau"que apenas era teu conhecido, irá certamente oferecer sua casa e seu tempo (além dos dotes para traduçao adquiridos em seu novo lar) a aquele que, enquanto estava ao seu lado em seu país nunca te deu tanta bola assim, mas uma vez que você mudou seu endereço pra milhas e milhas do original passou a ser uma pessoa interessante.

Falando claramente: na sexta-feira eu estava trocando idéia com uma amiga russa que me narrou um caso curioso e que me pareceu filme reprisado. Eu ri muito, mas muito porque me pareceu alguns dos meus próprios relatos e de outras amigas brasileiras que para cá se mudaram.

Segue o relato dela:

"Sou de Moscou e tenho primas que moram em Saint Petesburgo, as duas cidades ficam a 7 horas de trem uma da outra. Apesar de serem meus parentes nunca fomos próximas, no máximo uma escreve pra outra em datas especiais como aniversário, Natal, Ano-Novo ... mas tudo por e-mail e agora pelo facebook. Nunca me deram um telefonema e eu tao pouco.
Até o dia em que mudei pra cá! Mudei meu endereço no facebook, coloquei "İzmir" e postei algumas fotos do meu entao noivo. Elas, assim que viram isso, elas que nunca fizeram uma ligaçao interurbana imediatamente me ligaram de Saint Petesburgo, uma ligaçao que é muito, mas muito mais cara!
Falaram que estavam morrendo de preocupaçao comigo, para eu ter cuidado e tal. Oras, enquanto eu morava em Moscou ninguém nunca se preocupou comigo se algo poderia me acontecer etc ... só por que eu saí do país passei a ter importância ???"

Também falou dos posts daqueles que eram apenas conhecidos mas que de repente adquiriram status de amigos de infância. Recebeu muito post do tipo:

"Nossa te admiro demais. Você é uma pessoa guerreira."
"Saudades."
"Quando podemos te visitar?"
"Quando vai providenciar o bebê?"

Pra alguns ela chegou a responder claramente: "enquanto eu morava em Moscou, você morando num bairro vizinho nunca se preocupou em ir na minha casa, por que agora que eu estou longe você quer vir ?"

Os russos têm um jeito direto de abordagem que sinceramente eu acho ótimo. Odeio gente duas caras, eles vao lá e falam na lata.

Eu ri muito porque percebi que os caras-de-pau russos sao tao cara-de-pau quanto os brasileiros. Daí nosso camarada norueguês chega e eu conto o relatado acima e pergunto pra ele:
- E seus conhecidos, também passaram a ser seus "amigos de infância"?
- Nao, nao tive isso nao. Mas eu acho que isso é mais coisa que acontece entre mulheres ...

Eu e minha amiga nos entreolhamos. Fazia sentido. Chega o camarada americano e fazemos a mesma pergunta:
- Well, normalmente meus amigos perguntam quando eu vou voltar pros Estados Unidos, nao o contrário.

Agora tem um ponto: perguntei pra dois estrangeiros homens oriundos de países de 1o mundo, entao ainda nao posso afirmar que meu amigo norueguês tenha razao. O norueguês veio morar temporariamente, o americano namora uma turca entao ainda nao posso dizer que eles têm residência fixa.

Taí mais um tema pra minha próxima pesquisa, tentando entender certas dinâmicas que regem as relaçoes humanas. E por falar nisso, aproveito pra deixar a dica de leitura "Amor Liquido", de Zygmunt Bauman.


Nota: lembrando que o termo "cara-de-pau" vale pra aquela pessoa que nem era tao teu chegado assim, mas que de repende se descobriu seu super-amigo só porque você casou com gringo e mudou de país ...


Beijos pra vocês !

Luci

sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

O machismo turco e outros diversos problemas

Situaçao 1 : marido recebendo resultados dos meus exames médicos por e-mail.

Recentemente fiz diversos exames (sim, relativos ao meu problema com a comida turca e suas diversas pimentas e o azeite de oliva) e eis que meu maridinho me mostra o Galaxy dele com o e-mail aberto.

- Esses exames aqui sao os que você já pegou ou sao outros ?
- Mas e por que você está recebendo isso ????

E ele já se saltou falando "oras, sou seu marido. Entre marido e mulher nao devem haver segredos, eu tenho que saber o seu estado de saúde etc." Lembram do post onde relatei a briga que tivemos quando ele abriu uma carta endereçada a mim ?

Entao ... várias luas se passaram desde aquele episódio, cuja desculpa para o ato foi o fato deu "nao ser apta a entender o conteúdo da carta."

E agora ?

Desta vez eu nao briguei. Nao, isso nao significa que eu virei uma mulher submissa.

Desta vez eu usei todo o meu poder de argumentaçao:

- Ah sim, uma vez que nao devem haver segredos entre marido e mulher, entao eu também receberei seus laudos médicos por e-mail, certo ?

Meu marido ficou mudo e calado. Eu continuei em tom de brincadeira, pulando nele e rindo:
- Ou você acha que é meu dono e tá usando isso de desculpa ? E por que eu nao recebi meu laudo por email ? Qual é a desculpa agora, que nao sei ler em turco ????
Ele ria também e disse:
- Nao é bem isso ...
- Ah, entao você se acha melhor do que eu ?
- Nao! Nao ! De modo algum ...
- Entao você pode por o meu email pra receber seus laudos, senao eu mesma farei isso ...
- Tá certa, tá certa.

Lembrei de um conto de Malba Tahan, onde o jovem entendeu o sistema e usou o sistema contra ele próprio pra se vingar. No meu caso - além de me dedicar a aprender turco - tenho observado como o sistema se desenrola, as relaçoes sociais daqui e procurando me proteger como posso.

Situaçao 2 - pesquisando preço de fisioterapeuta pra uma amiga americana

No mesmo hospital onde fiz meus exames fui com uma amiga verificar os preços das sessoes de fisio. Recomendei o hospital por saber que eles disponibilizam tradutores para pacientes estrangeiros.
A atendente estava tentando convencê-la a ter uma nova consulta com o especialista e fazer novamente o exame de ressonância, alengando que o mesmo era antigo. Minha amiga contestou mas ela continuou insistindo.
Eu nao me aguentei e virei em turco pra ela: qual a necessidade dela passar novamente por consulta médica ? Os médicos deste hospital nao confiam nos médicos do Şifa ? E outra: como uma ressonância de duas semanas atrás pode ser "antigo" ?
- A senhora tem razao, vamos falar com o médico para ver se ele aceita os exames.

E aceitou. Mesmo quando você encontra alguém falando inglês ainda assim está sujeito a nego querer tirar vantagem. E neste caso a vantagem era de mais de 100 paus.
A questao neste caso nao é nem o idioma. É argumentar baseada em fatos lógicos e óbvios.

Situaçao 3 - o garçom chato empurrando cha, café e pimenta em compota (ta loko meu ?)

Fui a um restaurante com uma amiga russa - nunca tinhamos entrado lá. Ela comeu a saladinha dela e eu , como ainda estava cheia do spaghetii do almoço somente pedi um ayran. Eu nem tinha terminado meu ayran o garçom já veio oferecer chá.
- Nao obrigada.
- Café ?
- Nao obrigada.
- Por queeeeeeeeeeee ???

Mano, eu me segurei mas fui educada. Tentei um argumento que encerrasse logo o papo.
- O médico proibiu.
- Mas por queeeeee ? O que é que você tem?

Mano eu mereço... garçom mais abusado, intrometido. Eu somente queria encerrar.
Vi umas compotas que de longe pareceram doce de abóbora. Só no meu sonho que ia ter isso aqui em İzmir ...
Pronto dae veio outro chato pra querer empurrar os produtos, que na verdade eram pimentoes em molho de tomate!
- Nao, nao de jeito nenhum! Sou alérgica, o médico proibiu.

Quando voltei pra minha mesa pra terminar o meu ayran o garçom chato vem com uma compota e diz que ia me dar uma com garantia de que nao iria me fazer mal. Perguntei se poderia mandar a conta do hospital pra ele também.

Bem ... da última vez que me "deram" uma coisa a coisa custou 40 paus ...

- Quanto ?
- 10 liras.
- Mas eu nao posso, o médico me proibiu.
- Por queeeeee? Qual o seu problema ?????
- Ulcera. - respondi esperançosa de que ele me deixasse em paz.
- Mas eu também tenho úlcera ! E nossa essa compota me ajuda muito e tal e bla bla bla ...

Eu mereço ! Ele definitivamente achou que eu era idiota. Minha amiga russa nao escondeu o risinho no canto da boca.

- Olha, entao eu vou ligar pro meu marido pra saber se ELE quer, por que eu nao vou comer ...

Enquanto eu ligava pro Mustafa ele se afastava, e depois da ligaçao ele mesmo quem disse:
- Você nao quer, é isso ?
- İsso.

E pegou o pote, levando-o novamente pra prateleira.

Mesmo que meu marido nao tivesse atendido, eu ia falar com o tu tu tu tu de qualquer maneira. Quando você fala em "marido" o povo muda.

Agora sim o conto "a ciência da vida" de Malba Tahan. Boa leitura !

A ciência da vida - Malba Tahan



Por Malba Tahan

Naquele ano um acontecimento inesquecível perturbou a secular tranqüilidade da pequena vila de Anadir.

Assinalemos o caso. O jovem e talentoso Namedin, filho do xeque Omar Iruã, depois de longa ausência, regressava ao seu torrão natal, trazendo o diploma que lhe fora conferido pela famosa Universidade de Bagdá.
E o inteligente Namedin não perdera tempo na capital: segundo o dizer das pessoas cultas, era o nosso herói motivo de orgulho para a sua terra, e de glória para a sua família. Aprendera, durante seis anos, com sábios muçulmanos, a ciência imensa que vem nos livros. Estudara, além do mais, a Filosofia, a Matemática cheia de fórmulas, a Lógica com seus belos princípios, a Retórica, a Astronomia e vários outros ramos fecundos do conhecimento humano.
O rico xeque Omar Iruã, figura de relevo na cidade, proclamava com paternal vaidade aos amigos:
- Meu filho, senhores, pela cultura incomparável que possui, é capaz de discutir trinta dias com os ulemás do Egito e da Palestina!
Ulemá - como todos sabem - é sinônimo de homem que se destaca pelo saber e pelo estudo. E pouco faltava para que Namedin, apesar de sua juventude, fosse consagrado pelos seus concidadãos com o honroso título de "ulemá".
E em Anadir, afinal, desde a mesquita até o hamã (1) não se comentava outra coisa. As lendas mais espantosas brotavam no meio das rodas que palestravam. Dizia um que Namedin conhecia os cento e trinta mil segredos do Alcorão; garantia outro que o jovem sabia de cor todas as páginas de Ibn Batuta, o sociólogo; afirmava um terceiro que o mancebo resolvia equações e fazia cálculos com letras. E não havia, é certo, muito exagero nessas indicações. O recém-formado era douto entre os mais doutos.
Ao cair da tarde, em meio dos festejos, o xeque Omar Iruã chamou o jovem bacharel e disse-lhe:
- A tua fama, meu filho, deslumbra e assombra a nossa pequenina terra. É preciso porém que, em prova pública, possas justificar o alto conceito em que és tido pelos nossos conterrâneos.
- Que devo fazer, meu pai? - perguntou o rapaz.
- Nada mais simples - explicou o velho. - Hoje à noite depois da prece (2), haverá uma reunião na mesquita. Lá estarão presentes os homens mais ricos de Anadir e também o nosso venerável mufti Dijá-Eddin Abdel-Anurek Ben-Abdallah com seus conselheiros, cádis e secretários. Farás nessa ocasião um eloqüente discurso no qual demonstrarás que és um conhecedor profundo da verdadeira ciência da vida. Com esse discurso deverás impressionar principalmente o mufti, nosso ilustre chefe e judicioso amigo.
Assim farei, meu pai - volveu com segurança o moço. - Asseguro-te que o povo ficará deslumbrado com as minhas arrebatadoras palavras.
E, nessa mesma noite, realizou-se na mesquita a reunião solene. Ao templo compareceram os elementos mais representativos da sociedade muçulmana: xeques, com seus turbantes de seda, ricos mercadores, escribas, doutores, etc.
O jovem Namedin, ao subir para a tribuna que lhe fora destinada, com um rápido olhar examinou o público numeroso que ia ouvi-lo. Avistou logo o velho mufti (3), imponente, com suas veneráveis barbas derramadas sobre o peito.
Ditas as palavras do ritual: "Em nome de Allah, clemente e misericordioso", o nosso herói iniciou um vibrante discurso de apresentação.
Discorreu, a principio, sobre os grandes movimentos sociais dos povos civilizados, impelidos pelas correntes irresistíveis do modernismo. Pintou, com as cores vivas da eloqüência, o panorama da vida arrebatada pelos fatores mais complexos das tendências sociais.
- Por Allah! Que talento! - murmuravam os ouvintes.
- E, amigos - continuava o jovem orador arrastado por um entusiasmo sempre crescente, - o mundo, queiram ou não queiram os espíritos tacanhos, marcha para a frente levado por um ideal invencível de aperfeiçoamento. E a nossa infeliz Anadir fica imóvel, abandonada à margem do progresso, como se fora uma cidade morta e esquecida. E quereis saber porquê? Eu vos direi a verdade. O governo desta terra está entregue ao velho mufti, homem decrépito, incapaz de compreender as tendências modernas da sociedade. Como pode um espírito rotineiro, inculto, arcaizante, admitir as transformações impostas pelo progresso? Jamais há de prosperar uma cidade cujos destinos estão nas mãos de um ancião sem a indispensável energia e sem a necessária capacidade administrativa.
Essas palavras, que feriram o homem de maior prestígio na cidade, causaram nos muçulmanos um escândalo nunca visto.
O mufti ouviu impassível a parlenda do moço como se nada tivesse compreendido; fez apenas um ligeiro sinal com os olhos a um de seus auxiliares e este murmurou
- Logo, ao sair, veremos.
E quando Namedin, orgulhoso pela sensação causada, deixava a mesquita, foi de súbito agarrado por três capangas e espancado impiedosamente.
A sova foi tão violenta que o imprudente perdeu os sentidos e teve de ser carregado por alguns amigos para a casa de seus pais.
Muitos dias depois, quando já se achava convalescente dos ferimentos recebidos, falou ao pai e queixou-se do procedimento indigno do mufti que fora o mandatário da bárbara agressão.
Disse-lhe, então, o velho xeque:
- O mufti assim procedeu, meu filho, por um motivo muito justo. Ele quis mostrar que, apesar do curso de seis anos que fizeste na Universidade, ainda ignoras, por completo, a Ciência da Vida. Vais, portanto, por minha ordem, voltar novamente para Bagdá e estudarás mais um ano com os sábios filósofos. Veremos depois se findo êsse novo prazo se terás adquirido os conhecimentos indispensáveis sobre a verdadeira Ciência da Vida.
Namedin, obrigado a obedecer à resolução paterna, voltou para Bagdá e durante vários meses freqüentou os cursos da Universidade.
Quando regressou outra vez ao seu torrão natal foi festivamente recebido por seus antigos camaradas.
Houve, como da primeira vez, sob a presidência do mufti, uma grande reunião na mesquita e o jovem Namedin foi convidado a proferir um discurso.
Ao tomar lugar na tribuna, o nosso herói avistou a figura impotente do mufti que, rodeado de seus íntimos, aguardava, como da outra vez, solene, a palavra do orador.
Namedin, em longos e eloqüentes períodos, fez o elogio do povo fiel de sua terra natal que ele qualificou de "próspera e progressiva". Falou, em seguida, da figura do mufti, esse ancião venerável, "modelo de virtudes", "xeque dos xeques", "amparo da justiça", "inspirado de Allah" e mil outros elogios que deixaram o mufti sensibilizado e comovido.
E, com um brilho incomparável, Namedin assim falava:
- E devo dizer ainda, ó irmãos dos árabes!, que o nosso glorioso mufti pelas suas excelsas virtudes, pela sua vida exemplar e digna, é um verdadeiro santo! E qual é a homenagem que os fiéis muçulmanos devem prestar aos grandes santos do Islã? Determina o Alcorão, o livro de Deus: "Conservai dos homens dignos os bons exemplos e venerai as suas relíquias". Cumpre-nos pois como um dever sagrado, conservar do nosso santo mufti uma relíquia qualquer. E das relíquias dos santos as mais preciosas são constituídas pelos fios de barba. Que cada um dos bons fiéis conserve do nosso virtuoso mufti um fio de suas veneráveis barbas.
E, depois de proferir tais palavras, o jovem Namedin desceu da tribuna, dirigiu-se ao mufti, inclinou-se respeitoso e com a ponta dos dedos arrancou delicadamente um fio das longas barbas do ancião.
O mufti, lisonjeado em sua vaidade em face da extraordinária homenagem, agradeceu e abraçou risonho o nosso herói.
O exemplo de Namedin foi logo seguido por várias pessoas que se achavam perto. Ao fim de alguns minutos, verdadeira legião de fanáticos atirava-se sobre o velho mufti que se sentia puxado pelas barbas e maltratado pelos seus devotados servos.
Os fiéis faziam empenho em obter uma relíquia do "santo".
Com o rosto a sangrar e as vestes em farrapos conseguiu o mufti fugir dos exaltados muçulmanos.
E o inteligente Namedin rejubilava-se da lembrança que tivera. Estava vingado da sova tremenda que um ano antes recebera por ter sido sincero.
E, nessa noite, seu pai disse-lhe orgulhoso:
- Agora sim, meu filho, já conheces perfeitamente a verdadeira Ciência da Vida.

(1) Hamã - Casa de banhos.
(2) Prece - As preces obrigatórias para os muçulmanos são em número de cinco. A primeira, ao nascer do dia; a segunda, ao meio-dia; a terceira, tem lugar às quatro horas da tarde, mais ou menos; a quartaé proferida ao cair da tarde e a última à noite. A prece deve ser precedida da ablução.
(3) Mufti - Espécie de prefeito e juiz. O mufti era encarregado do governo de uma cidade.


Fonte: Tahan, Malba. O gato do cheique e outras lendas. Rio de Janeiro: Ediouro Publicações S.A., 1997.
 
 
Tirado do blog:http://patriciagonzalez11.blogspot.com/2011/03/ciencia-da-vida-malba-tahan.html