Teve quem me escreveu sentindo falta dos meus posts. Confesso que tenho escrito muito menos uma vez que: 1 - faz 3 anos que não moro mais na Turquia; 2 - o blog é sobre Turquia.
Mas pensando cá com meus botões não há sentido para eu parar de escrever sobre minhas reflexões acerca de um universo vasto com assunto inesgotável: Turquia, Brasil & Turquia, turcos e brasileiros e expatriação - com as consequentes transformações que ela implica.
Não sou dona da verdade, não sou especialista em nada. Aqui exponho meu ponto de vista. Somente isso.
Mas escrever sobre o quê?
A inspiração veio logo de manhã, quando o canto dos pássaros tirou meu corpo da cama, e mesmo o tempo estando frio (friozinho) coloquei meu moletom calcei o par de tênis e saí de casa.
O dia estava claro - mas depois que voltei pra casa a cor cinza do outono deu as caras - os passarinhos cantando, as árvores ainda ostentavam as flores da estação anterior.
Desci a rua que faz esquina com a nossa e decido tomar o caminho da escola onde estudei o primário (naquela época tinha esse nome ...)
E aí a nostalgia tomou conta de mim.
As referências
Muita coisa mudou naquela rua - é claro - mas depois que eu voltei ao Brasil não foi a primeira vez que passei naquela rua. Mas hoje senti até o estômago revirar.
Lembro de ter andado por aquelas ruas "virtualmente", pelo Google Maps, quando estava com meu marido ao meu lado observando atentamente as ruas que fizeram parte da minha infância. E o que se passa na infância a gente carrega pra vida toda.
Quando encontramos algo que é familiar encontramos parte de nós mesmo nessa coisa: seja a escola que você estudou, seja aquele colega de classe (mesmo o mais filho da p...), seja a esquina onde tinha sua lanchonete favorita, mesmo que a tal lanchonete não exista mais. Essas coisas todas têm memória, e essas memórias fazem parte da nossa história pessoal. Elas testificam os nossos relatos de quem fomos/somos e do que fizemos/fazemos.
Hoje - em minha caminhada para reduzir ainda mais o colesterol ruim (aliás recomendo porque funciona mesmo, o meu baixou pra caramba ...) - minhas referências pessoais saltaram aos meus olhos muito mais do que nos outros dias que passei por aquele mesmo trecho do bairro onde moro: a escola, a casa de alto padrão - hoje abandonada com uma placa de "vende-se" pendurada no portão enferrujado, a guarita na frente da escola, a escola ...
Eis que encontro uma pessoa conhecida àquela hora da manhã: o marido de minha amiga de infância - aliás eu quem apresentei os dois.
Nos cumprimentamos, trocamos algumas palavras - preferi não esticar a conversa para não quebrar o ritmo da caminhada pois ele também estava com a camiseta molhada e obviamente fazendo o mesmo que eu.
Continuo subindo a rua, e as referências reforçadas começaram a martelar na minha cabeça.
Mudar para a Turquia me fez deixar as minhas referências para trás, e essas, com o sabor do passar do tempo se desbotaram: quando retornei para o Brasil percebi que todo mundo tinha a agenda cheia e seguiam suas vidas com as mudanças que vieram nesses 3 anos em que fiquei fora. "Estou na correria" foi o que mais ouvi e percebi que encontros do tipo "vamos marcar alguma coisa" ficam só na promessa mesmo.
Os amigos de verdade ficaram e me encontraram e continuam me encontrando. Mesmo com a tal "correria" a gente decreta um domingo qualquer pra se ver nem que seja pra jogar dominó um na casa do outro. Porque hoje estamos aqui, amanhã provavelmente estaremos em outra cidade ou quem sabe, em outro país.
Construindo referências
E aí meus queridos, indo para outro lugar bora construir novas referências tudo de novo ... e isso consome uma energia danada! Ansiedade em saber se a adaptação ao novo lugar e a nova gente vai acontecer, quando ela vai acontecer, o lidar com os novos problemas e desafios (esses sempre tem!). E estou falando de mim e do meu marido - este deixou referências de 44 anos para trás, mas ao contrário das minhas que "sempre estão na correria" as dele continuam ativas usando todos os meios de comunicação para manter contato. As amizades do meu marido não esfriaram um grau sequer.
Nos 3 anos em que morei em İzmir também construí minhas referências por lá: amigos, vendedores que me conheciam pelo nome ... minha padaria favorita, meu restaurante de peixe preferido. Minha curtição de pegar o ferry boat só pra jogar pão com gergelim para as gaivotas.
Depois de ter minhas referências lá tão longe fui despojada de tudo isso novamente mas dessa vez não por vontade própria e sim pelo erro alheio - já comentei isso em uma das transmissões ao vivo no Facebook.
Continuo andando, viro a esquina. E passo por uma árvore florida podada geometricamente como se fosse aparecer num filme.
Reparo nas casas dessa rua, todas bem pintadas, a rua limpa. Até parece interior ...
O bairro ficou caro demais e sinceramente mesmo que nossos ganhos nos permitissem comprar um imóvel lá será que valeria a pena?
"- São Paulo está saturada!" - diz meu marido todos os dias. Ele nunca gostou de São Paulo. Assim que desembarcou em Guarulhos me viu lidando com um golpista que já veio abordar a gente assim que saímos do aeroporto. Na primeira semana, andando na av. Paulista comigo tomou uma gravata de outro vagabundo. Em 44 anos de İzmir nunca passou perto de algo assim.
Bem, graças a Deus que até hoje não viu uma arma apontada pra ele como eu tive a infelicidade de ver uma vez. Eu e mais quantos dessa cidade!
A igrejinha perto de casa convida os vizinhos à missa. Algumas vezes - por convite do meu marido - nós vamos. Detalhe: nenhum de nós dois é católico. A paróquia nos convida à um momento de paz, de conexão com Deus, com o divino. Lá meu marido se sente tranquilo porque ninguém vem perguntar se ele pertence àquela religião. As portas estão abertas, assim como os braços de Jesus. Simples assim.
Olhando pra foto até parece interior. E isso me fez sentir os tentáculos das minhas referências pessoais enroscarem em meus pés, e um sopro trouxe uma voz que disse: "fica".
Meu marido entraria em parafuso se eu propusesse algo assim! Desde que decidimos nos mudar para Araras (no interior de São Paulo) um monte de coisas aconteceram: eu adoeci, meu marido adoeceu (quase o perdi!) despesas médicas, despesas com coisas que quebram, despesas com equipamento. Começamos a reagir em nossos negócios em janeiro (antes do tal "fevereiro" de carnaval quando o país começa a funcionar). E aí eu fico na dúvida: essas coisas são obra de São Paulo pregando um prego nos meus pés (para desespero do Mustafa) ou são desafios do Universo para nos provar se estamos dispostos a lutar pelos nossos sonhos?
Rua da escola onde estudei.
Continuo andando, descendo a rua dessa vez. E encontro o marido da minha amiga novamente. Até tinha me esquecido da bronca que tinha dele (me fez algumas desfeitas uns bons anos atrás). Agora, naquele momento ele não era aquele cara de quem eu tinha bronca: ele era a referência que reforçava as minhas ideias de ficar em São Paulo, mais especificamente na Vila Ipojuca.
Trocamos mais algumas palavras, e eu segui meu caminho. Passo a rua onde tem um mercadinho em frente ao posto - lembro de uma vez que choveu tanto que eu vi um carro saindo do posto, boiando, e indo pro meio da rua. Subo a rua e na padoca de esquina vejo um conhecido - este é referência recente - e decretando o fim do meu exercício diário paro para trocar uma ideia.
- De onde você está vindo? - pergunta.
- Fui fazer minha caminhada, sabe como é ... manter o colesterol no nível certo. - brinco.
- Não vá pela rua Croata, tá tendo muito assalto por lá! - me alerta.
Fodam-se as referências! - pensei naquele momento, e me dei conta de que a Ipojuca que minha alma busca ficou nas minhas memórias de infância. A violência chegou para os lados de cá. Aquele não era o primeiro relato de assalto, nem o segundo ... e o clichê de que "ah mas isso está em todo lugar" não cola para eu fazer o que seria mais fácil: ficar.
Eu tenho uma família: meu marido. Se ele quer ir para Araras porque é melhor para nós em uma série de aspectos então vamos para lá e pronto.
Beijo da Luci!
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