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domingo, 11 de setembro de 2016

Contos das montanhas de Kavaklıdere - e o demônio tem cor?

Manhã de inverno. O sol lutava contra os ventos cortantes daquelas montanhas, ventos que não cessavam um instante o canto cadenciado "uuu..uuuu. uuu". Aquilo era de arrepiar qualquer um, mesmo com o dia claro e as matas forradas por margaridas românticas.





Ainda bem que os javalis não saíam enquanto o sol brilhava. Eu tinha 3 km pela frente até chegar no ponto de ônibus do vilarejo, e neste percurso qualquer coisa podia sair da mata virgem: um esquilo, uma cobra. Às vezes eu salvava um jabuti desastrado que caía do meio fio ao tentar cruzar a estradinha que cortava aquele trecho de floresta.


mais um salvo por mim hehe

Acelerei o passo. Com o tempo aprendi a ler os sinais daquele caminho: uma pedra onde o riacho fazia curva... parte da tubulação esquecida pela prefeitura... uma árvore cujo formato memorizei. Avistar a base secreta da OTAN (se era secreta como estava diante dos meus olhos?) me trazia mais alivio por saber que passando por ela eu estaria mais perto das primeiras habitações. Antes disso, eram somente a floresta e eu.

Mas naquele dia, justamente no trecho em que eu me sentia mais segura algo aconteceu.

Avistei um rebanho de ovelhas fofas, cheios de lã, e meu instinto me lembrou que toda vez que avistara isso de dentro do carro do meu marido podes crer que vinha um Kangal enorme pastoreando logo depois do último animal.

E foi o que me vez reduzir o passo. Olhei para todos os lados, passando o olho em uma por uma das ovelhas, que descendo o morro aceleravam também na estradinha recém-pavimentada. Julguei que não havia cachorro nenhum e decidi retomar meu ritmo, quando ele surge subindo o barranco do riacho: o demônio laranja.

Era um pouco menor que um Kangal, mas o pêlo curto laranja mostrava a musculatura potente; as orelhas e rabo cortados, típico dos cães de rinha, típico dos cães de pastoreio avisavam que ele não estava lá para brincadeira. Era um mestiço, mas com as proporções típicas dos molossos.

Éramos eu e ele, com a floresta a nos cercar. E o pátio de treinamento da OTAN vazio.Até o vento silenciou naqueles segundos em que ficamos nos fitando.

Algumas vezes vi os Kangais do nosso quintal se pegarem, e era uma briga de titãs! Uma vez um deles, fugindo, foi arrumar briga com o da propriedade vizinha e voltou pra casa com a cara dilacerada!

Mas ao invés de fúria vi ternura em seus olhos, o que contrastava com a postura rígida que tomou ao me ver. Não me inspirava nenhuma confiança e eu não tinha onde me abrigar.

Nenhum passo. Nem meu, nem da criatura. Cinco minutos, dez ... eu olhava no relógio do celular - que naquela região só servia como relógio mesmo! Eu não tinha como dar um telefonema e não passava ninguém!

Vi soldados começarem o treinamento. Havia um barranco-riacho-grades e mais um grande terreno entre a gente. Sem chance deles me socorrerem...

Até que ele dá o primeiro passo e eu senti minha alma sair do corpo. Não havia nada que eu pudesse usar para me defender (meus olhos já tinham buscado pedras e paus, numa outra ocasião me ajudaram contra um outro cachorro, mas um Kangal é outra coisa...).

Depois que tinha me mudado para aquela área tão próxima da floresta eu tinha aprendido a lidar com muitas coisas: colocar cobra dentro de balde, resgatar um dos nossos cachorros que tinha enroscado a corrente entre a cerca e o tronco duma árvore e ficar pendurado, lutar com uma cabra que invadiu nosso quintal usando um rodo como arma ... Depois de analisar todas as possibilidades de fuga eu simplesmente não tinha achado nenhuma!

Mais passos, cada vez mais acelerados em minha direção. As ovelhas se afastaram tanto que a curva daquelas montanhas já os encobriam. Eu pensava no meu marido, na minha família, no que ia acontecer comigo. Será que os soldados, vendo, viriam em meu auxílio?

Ele chega à uma distância suficiente para tomar impulso e me atacar, me destroçar se quisesse. Então ele começa a abanar o toco de rabo que lhe restou, requebrar o quadril e um sentimento - só quem tem cachorro e GOSTA vai entender - veio e nossas conexões se refizeram naquele instante: ele era irmão do Aslan, um dos dois cachorros laranjas que a Ginger tinha parido entre os 12 daquela leva. Eu tinha separado os vivos dos mortos, colocados todos dentro da casinha - a cadela, péssima mãe, tinha parido na terra e não se deu ao trabalho de coloca-los num lugar melhor. Cuidei deles todos até serem distribuídos entre os pastores de ovelhas e cabras da região.
Tinha sido no meu primeiro ano na Turquia!

Essa foi a foto que eu tirei dele, quando vi neve pela primeira vez em minha vida

Meu queridinho laranja - o Aslan - teve que ser sacrificado um ano antes, depois de fugir e ser atropelado por uma caminhonete - o dano na coluna e num dos rins foi irreversível.
Não cheguei a vê-lo chegar na fase adulta, e a perda do meu mascote quase me enlouqueceu na época, seguida da morte do meu cachorro que tinha ficado no Brasil...

Certamente teria ficado como o seu irmão, o "demônio laranja" que cuidava sozinho de um rebanho. E por conta dessa amizade milenar entre humanos e caninos fui poupada.

Confira o vídeo e aumente o som. Sinta-se transportado(a) para o lugar bucólico onde morava. E imagine o choque para alguém que se criou na Selva de Pedra ir parar em outra Selva, a de verdade: